sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Em Kisses on the bottom, Paul McCartney revê cenas de uma trajetória longa



Por: Tiago Faria


Quando queria mexer com os nervos de Paul McCartney, John Lennon comentava que o amigo tinha uma queda por "canções para vovozinhas". Não era uma acusação totalmente falsa: por muito tempo, Paul carregou elegantemente o estigma de beatle sentimental, defensor teimoso das tradições pop. Essa caricatura, no entanto, oculta nuances que o disco mais recente do cantor e compositor, Kisses on the bottom, trata de revelar. No álbum, que relê velhos "standards" norte-americanos, o músico corrige o mito ao apresentar os clássicos "pré-rock" que ele e John, ainda em Liverpool, usavam como referências para escrever as próprias melodias.

Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, Paul lembrou que pretendia ter gravado o projeto ainda nos anos 1960, no intervalo das criações do quarteto. Teria, por sinal, escolhido 30 músicas para a homenagem, sempre com a colaboração e o aval de John. "Não conseguimos porque estávamos escrevendo Sgt. Peppers ou o Álbum Branco", brincou. Com o tempo, a ideia ganhou matizes mais pessoais, passando a despertar as lembranças da época em que o músico aprendia com o pai, que era pianista profissional, a apreciar cantores de jazz. Algumas dessas canções sobreviveram à edição do álbum, que contém duas inéditas: My valentine e Only our hearts.

Saudosismo à parte, o projeto não deve ser classificado como um típico álbum de "crooner", na esteira da coleção de antiguidades que Rod Stewart lança desde 2002. Até porque, Paul, que raramente se deixou seduzir por excessos, mantém uma atmosfera de intimismo e simplicidade que se aproxima dos primeiros discos pós-Beatles e de um álbum típíco de Diana Krall — não por coincidência, a convidada principal do álbum. Além de "ceder" uma banda de instrumentistas competentes, ela acompanha Paul ao piano, discretamente. Eric Clapton e Stevie Wonder também participam. E, pela primeira vez em um álbum da carreira, o compositor não toca instrumentos — apenas canta.

O repertório evita obviedades, com trechos que surpreendem ora por um romantismo quase inocente (The glory of love, de Billy Hill), ora por um inusitado desfecho em clima de conto de fadas (The Inch Worm, de Frank Loesser). Além de citar ídolos do músico, como Cole Porter e Harold Arlen, o disco soa como um tributo sincero a uma escola de compositores norte-americanos que definiu os padrões do cinema clássico hollywoodiano e da Broadway. "É um disco de pratos que foram negligenciados no banquete da música popular norte-americana", resumiu o crítico Patrick Humphries, da BBC. Ou, para o fã dos Beatles, um guia para se entender como a banda estudou o engenho do pop mais melodioso e acessível.

Uma das faixas, Bye bye blackbird (de Ray Henderson e Mort Dixon), é o atalho mais curto para se fazerem essas e outras conexões musicais. Mais importante que forçar a comparação com Blackbird, de Paul, a música aponta a origem, o rastro das memórias que alinhavaram as baladas melancólicas de álbuns como Abbey Road (1969) e Let it be (1970). Ao rever cenas de uma trajetória longa, o autor de Yesterday dá prosseguimento a uma fase autorreflexiva que encontrou escape em projetos de canções próprias (como Memory almost full, de 2007, e Chaos and creation in the backyard, de 2005) e de versões — Run devil run, de 1999, acertava contas com o passado rock ‘n’ roll do compositor.

TRIBUTO DESPRETENSIOSO 
Aos 69 anos, recém-casado com a empresária nova-iorquina Nancy Shevell e dono de uma fortuna estimada em US$ 1,2 bilhão, Paul cria discos serenos, que indicam um período de tranquilidade — ainda que não exatamente de acomodação. Kisses on the bottom é o reflexo mais preciso dessa temporada morosa — para, segundo o próprio cantor, "ser ouvido em casa, depois do trabalho, com uma taça de vinho ou uma xícara de chá." Não é, obviamente, apenas isso. Mas a produção de Tommy LiPuma, que já criou climas aconchegantes para Barbra Streisand, acentua o tom de tributo despretensioso, bem-humorado, polido com esmero por um ídolo que não precisa mais se justificar.

Mas que, ainda assim, se justifica. Quando anunciou o projeto, no fim de 2011, Paul imediatamente se antecipou às críticas (previsíveis) de que estaria apelando a uma estratégia comercial não tão sofisticada: anunciou um álbum de rock "mais pesado". Disse ainda que, para isso, teria conversado com Dave Grohl, do Foo Fighters. "Posso ir parar numa garagem para gravar esse novo disco. Nunca se sabe", o ex-beatle comentou à Rolling stone. Seria esse o desfecho, enfim, da sessão nostalgia? 

KISSES ON THE BOTTOM
35º disco de Paul McCartney. 14 faixas, com produção de Tommy LiPuma. Lançamento Hear Music/Universal. Preço médio: R$ 30. 

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